O inimigo invisível.




                Encolheu-se na cama. Sentiu o calor do seu corpo radiando dos lençóis e a textura do tecido sobre a pele. O sol já estava alto no céu pois seus raios se projetavam veneziana adentro na janela do quarto atravessando o tecido fino da cortina e denunciando a poeira suspensa no ar do quarto. O travesseiro exalava o cheiro gostoso de roupa lavada.
                E aquele pensamento rondou sua cabeça: ‘ahhh só mais um pouquinho levanto em 5 minutinhos’. E o lençol a embrulhou num abraço morno e reconfortante, o colchão a engoliu em sua maciez e a travesseio a confortou. Cena comum de um romance com o botão soneca do celular.
                Não percebemos nossos comportamentos reativos. Alguns de nós são sedados pela preguiça mecanicamente inseridos em uma rotina que não lhe acrescenta nada nem dá sentido à sua vida parecendo estar inseridos no filme do Charlie Chaplin ‘ Tempos modernos’ num eterno movimento repetitivo e enfadonho. Outros são paralisados pelo medo de algo fora da rotina conhecida daquela bela gaiola dourada e ‘segura’ afinal colocamos os limites onde nos sentimos seguros. Outros esbravejam orgulhosos sobre uma vida vazia, tentando convencer-se de que são muito diferentes da maioria enquanto se misturam à manada.
                O traje do inimigo muda, a forma como ele se apresenta a quem está ao redor também, mas a sua arma mortal à 2 mm da artéria vital que está em seu pescoço, isso somente outra pessoa pode te mostrar pois em um primeiro momento é impossível ver sem ajuda. Para conhecer esse inimigo que se mistura e camufla em nossas vidas no dia-a-dia é preciso olhos atentos fora de nossos próprios corpos. É preciso ver cenas de nossas próprias vidas como observadores e ser guiado com a neutralidade de alguém que não está envolvido no calor da discussão, na paralisia do medo, no conforto da preguiça, no orgulho que alimenta a auto sabotagem.
                A sensação de manter-se vivo sem motivo ou viver como um morto vivo nesse ir de casa para o trabalho e do trabalho para casa roboticamente, rezando pelo próximo final de semana para zapear o controle remoto e andar de pijama pela casa ou qualquer outro comportamento que preencha esse vazio. Essa sensação é compartilhada por boa parte da humanidade e está ali encravada no peito, em forma de um buraco permanente.
A necessidade de preenchimento deste buraco é constante, verdadeira e humana. É como um buraco negro que consome tudo que estiver em seu campo gravitacional. Assim na tentativa de preencher esse buraco o pote de sorvete terminou, você assistiu as oito temporadas de Game of Thrones, fez sexo incrível com seu parceiro por duas horas, mochilou pela Europa oriental inteira de uma forma que os deuses das trilhas aplaudiriam, venceu a maratona mais famosa do planeta, comprou 10 mil reais em roupas, mas o vazio ainda está ali, no mesmo lugar e do mesmo tamanho. É um gosto agridoce que vem após uma conquista de quem tem essa insatisfação constante. Alguns inclusive arriscariam dizer que a satisfação permanente e contínua não existe.
                Quantas vezes nos iludimos de que conhecemos aquilo que é representado na imagem do espelho. Quantas vezes as pessoas nos deixam com raiva ou reativos e não conseguimos compreender o real motivo de nos sentirmos assim? Quantas vezes achamos que estamos vendo o que nos cerca e não nos damos conta de um ponto cego? E quanto queremos nos convencer de que está tudo bem quando não está? Quantas vezes vemos no outro nosso inimigo e sequer nos damos conta?
                Toda esta situação tem algo em comum, mesmo não parecendo ter relação entre si. É aquele inimigo invisível pressionando a lâmina contra nosso pescoço que todos nós enfrentamos diariamente e pelo qual somos vencidos constante e inconscientemente: nossa natureza reativa. Algo que nos impede de alcançar nosso próximo nível de evolução, de progredir para nosso potencial máximo de alcançar a sensação de que estamos cumprindo com nossa missão de vida.
                O preenchimento verdadeiro e permanente existe. É uma sensação real, constante e verdadeira, mas não pode ser alcançada através de nada tangível pois o tangível é um meio e não o fim. É uma certeza de que a dificuldade vai ser vencida. É ter o buraco do peito preenchido independente das circunstâncias externas. É saber que tudo que eu preciso já se encontra dentro de mim e tudo que eu preciso fazer é encontrar o que já está ali.  
                Quando a fonte da plenitude se instala dentro de mim eu não preciso de mais nada. Alguns chamariam isso de presença divina e eu também acredito que essa fonte só pode ser a centelha do Criador, aquilo que nos torna parte d’Ele. Confesso que me sinto pequena diante do Criador e não acredito ter mente nem imaginação suficiente para personificar Ele mas tenho convicção de que a natureza dele é Doação e Amor Incondicional.
Mesmo quando as circunstâncias não são as mais felizes, tenho partes da minha vida que aprecio muito e sou grata e outras que me paralisam e me deixam confusa sobre onde buscar a solução. Como quem busca constante auto aperfeiçoamento vivo costurando e descosturando meus próprios retalhos. Tenho relações que gostaria de cultivar mais, sei preciso perdoar mais, amar mais, doar-me mais, dedicar-me com mais afinco.
Mas independente de lágrimas e sorrisos e da vida que está em constante reconstrução, o meu buraco negro já se extinguiu, pois, o preenchimento de ter um sentido real para a vida existe e eu já conheço as principais armas do meu inimigo invisível. Quando sua lâmina busca meu pescoço eu já sei como esquivar e tenho boas mãos ao meu lado que me puxam para escapar de seus golpes.

Estar vivo é movimento e constante mudança afinal se o meu inimigo não estiver mais aqui minha missão será em outro lugar.
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